Amor aos pedaços


Ele era um bom homem. E discreto. E silencioso.

Observou com uma preocupação tímida os pedaços esparramados pela casa. E ficou sem saber o que fazer. Não que não tivesse acontecido antes: era só que os pedaços nunca eram os mesmos e ele não sabia o que fazer dessa vez, como resolver.

Ele era um homem bem resolvido e, certamente, haveria de achar uma solução. Ponderou. Ouviu música. Saiu para andar. Alimentou os pombos no parque. Tomou banho de chuva. Fez a barba. Tirou no violão a nova do Apanhador.

E foi apanhando os pedaços pela casa, afinal, aquilo que já é morto começa a feder quando não enterrado - e ele já ouvia os abutres batendo com os bicos na janela de seu quarto:

- Viemos buscar o que é nosso por direito!

Então era preciso fazer algo. Terminou de recolher seus pedaços. A vida continuava. E ele continuava. Sempre gentil, mesmo quando triste, mesmo bicho ferido - no seu orgulho, no seu amor, na sua carne, no seu desejo. 

Respirou fundo. Arranjou cimento e disposição. Precisava de reforma. Juntados os pedaços, os caquinhos cobriram carinhosamente o quintal dos fundos. Sim, ele ganhou piso novo e agora já não havia mal cheiro. E quando um abutre veio lhe perguntar sobre o porquê de não ter enterrado os tais pedaços, ele respondeu:

- A memória é coisa viva e faz a gente ser quem é. Para que esquecer?

O abutre, que entendia de coisas mortas, entendeu e deixou o homem em paz. Foi embora pensativo. Quem ficou por ali foi o homem, também pensativo. E, de vez em quando, contemplava satisfeito a obra no quintal dos fundos. Dos caquinhos, conseguira fazer algo útil. Não um monumento à memória, mas...

- A memória é uma coisa bonita.

Ele era um bom homem. E um bom construtor. E mais do que um sobrevivente: ele era um ser vivente. 

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