O ponto fraco de Branca Neves

Podia até parecer cristal - porque todo mundo confunde delicadeza com fragilidade -, mas não era. Mas também não se sabia do que era feita. E ela mesma só se conhecia como gente: carne e ossos. Nada de sangue. 

Cortou o dedo com papel e não sangrou. Teve namorado vampiro e nada tinha a oferecer - além de se entediar. Largou a carreira de pintora porque não tinha vermelho para pintar com sua orelha. E era de uma frieza ímpar. 

No verão e na primavera, as coisas melhoravam um pouco e ela abria uma fresta da porta, da cortina. De resto, não sorria, nem dançava, não tocava. Sem manifestação de afeto, mas sempre polida e agradável. Mas, de repente, agradável não era bom, não bastava para o mundo. E ela olhava para tudo isso com uma indiferença livre de arrogância.

No inverno, era insuportável, porque quem ficava por perto acabava congelado. Passou a colecionar estátuas de quem se aproximava e acabava picolé. Em seu castelinho, patinava por entre pinguins igualmente insensíveis. Rainha das Neves.

O seu olhar até podia ter nascido na primeira noite depois da Criação, mas que noite fria aquela! Dureza de aço que fatia o presunto, defunto amor de nós dois.

Os buquês que recebia, quando não congelavam, acabavam murchando - como o amor alheio. E seguia, assim, uma vida solitária e satisfatória.

Entretanto, satisfatório parecia pouco para a sua existência ártica...

E, quando se sentia assim, seu pinguim predileto parecia adivinhar seus pensamentos e lhe trazia o Vinícius:

Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, que aliás você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado...

Era então que derretiiiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaa, vazava, transbordava do vestido (vermelho!?) e - ainda que por um breve momento - seu corpo era fluido e se esparrava pela sala, invadindo os outros cômodos, as casas vizinhas, os hospitais, supermercados... a cidade toda.

De repente, ela não era nem agradável nem sua vida satisfatória. Era completa e o excesso que escorria era porque suas mãos não sabiam (e queriam?) reter deter manter o que quer que fervilhasse dentro dela.

Todavia

uma vez que terminasse sua leitura

voltava o inverno 

mais frio

mais duro

mais distante de qualquer coisa... viva.

[aridez de deserto no coração dos homens]

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