Too drunk to dream

É madrugada e os dois estão sentados na calçada de uma rua qualquer no centro da cidade.

- Acho que eu não devia ter vindo - ela diz desanimada - Eu sabia que a noite ia terminar assim. Vai ver que a meu irmão tem razão: eu gosto de casos perdidos - sorri para ele.
- Acho que você bebeu demais, isso sim. Você se arrepende da nossa noite? - ele pergunta sem qualquer sinal de insegurança.
- Em parte. Tudo para mim tem sido parcial. Me arrependo porque eu sabia o que ia acontecer, sabia o que ia encontrar e ainda assim, vim. As coisas poderiam ser mais simples, não? E você não devia ter vindo... - murmura ela.
- Eu vou onde eu quero, você sabe. Não vejo mal nenhum em jantarmos e batermos um papo. Desde que você não beba da próxima vez... Não gosto quando fica dramática - censura ele.
-Você nem viu o que eu pedi para beber, né? Eu não bebo, você já devia saber. Beber é para os fracos, para quem precisa disso para conseguir o que quer.
- E você por acaso consegue o que quer sem beber?
- Pensando bem, não. Digo, eu sempre tento. Eu me faço a minha parte. Se não deu, não era para ser.
- Que filosofia mais conformista essa sua, hein? - ele ri.
- Você bebe porque não deveria estar aqui, porque tem uma esposa te esperando em casa e não sabe lidar com isso.
- Ela está na casa da mãe. Entre ficar sozinho em casa e jantar com você, preferi a segunda opção.
- É claro que preferiu - diz ela debochada - É tão estranho. Eu sinto como se tivesse que terminar com você quando nem mesmo estamos juntos... Isso  o que estamos tendo agora é quase uma D.R., não? E a pior parte é que eu não me sinto no direito de despejar as coisas em cima de você, não sou mais criança. E nem o quase nós vivemos...
- Você está dizendo aquele engatar de primeira marcha?
- Isso. Metáfora automobilística. Nem isso tivemos. Puxa, nós não tivemos nada, nem vamos ter - ela ri e continua - Então por que estamos aqui?
- Gosto de conversar com você - sorri ele.
- Às duas da manhã no escuro? - ela faz uma careta.
- Você não tem como voltar para casa e não me deixa te levar. Sinto muito se te incomoda, mas eu não vou te deixar aqui.
- E por que eu me importaria com alguém cuidando de mim? - pausa - Eu vou me detestar por isso, porque me sinto complicando tudo e sei que muito dificilmente vamos nos falar depois disso mas... O que nós somos?
- Olha, eu não sei. Mesmo - ele olha os pedregulhos do asfalto.
- Nós não somos nada, acho - ela diz pensativa - E não sei se isso me faz feliz ou triste. Se eu fosse mais direta, perguntaria se você me enche de expectativas para alimentar seu ego, para me levar pra cama ou por estar terrivelmente perdido. Se bem que me levar para a cama não deve ser o caso: nem faço o seu tipo...
- Bom, acho que você acabou de perguntar, mas como foi uma pergunta indireta, me dou ao luxo de fingir que não entendi - ele a olha de lado.

Ela dizia as coisas com a voz cada vez menos pesada. As palavras fluíam cada mais mais suaves e velozes. Logo estava falando da sua infelicidade como alguém que fala sobre bolo de chocolate.

- Você não é tão durona quanto pensa - ele olha tranquilamente para ela.
- Eu sei - ela olha para a noite, prestes a devorá-los - É tudo fachada. Aliás eu já tinha te dito isso.
- Dito o quê?
- Que eu não era durona, que eu só quero alguém para dividir a vida. Claro que não só isso, minha vida profissional vai muito bem. Tão bem que me vejo como a velha dos gatos, mas sem os gatos (é que sou alérgica). Talvez pombos, sim, pombos. Perto da minha casa tem uma senhora que alimenta pombos. Todos os pombos da vizinhança vêm se alimentar na casa dela: seria lírico se não transmitisse doença. Se bem que os românticos morriam de tuberculose e era bem lírico.
- Quando você me disse isso? Desculpe a insistência, mas esse era o tipo de coisa que eu me lembraria.
- Você estava bebado demais, provavelmente. Foi nas bodas de prata.
- Faz um tempinho isso, hein? Que mais você me disse de importante?
- O de sempre.

Ela o olha de um modo tão firme e sério e seco que ele tem medo, só não sabia de quê. Já nos olhos dele ela não vê nada.

- Eu acho que você não tem idéia do que está falando. Deve estar vendo muita novela para viver sua vida desse jeito e fazer as coisas como faz. Já conheci muitas outras como você...
- Não me venha ostentar essa sua experiência estúpida. - interrompe ela - Mulheres, viagens, empregos...Você não sabe nada da vida!
- Nem você. No fundo tudo o que quer é um marido que a ature - diz ele com certo desprezo.
- O Bill disse que nenhum homem me deixaria escapar e que eu nunca ficaria sozinha. Um exagerado. Tanto quanto você nessa sua última declaração. E vá aprendendo: tem verbos que a gente não conjuga nem com o pior dos inimigos e "aturar" é um deles. Me conhecer por intermédio do meu irmão não é saber quem eu sou.
- Se quer saber, já ouvi um desses seus verbos imperdoáveis: "redimir". Nunca esqueci, mexeu demais comigo na época - diz ele distante.
- Acho que ainda mexe, na verdade, mas enfim... Você é engraçado: me enche de expectativas para afogá-las como um gato dentro de um saco jogado num rio - ela ri seu riso de criança - Desculpe. Nunca pensei em passar por essa via crucis de novo, nem que você fosse desse tipo que planta flores só para poder podá-las.
- Nunca te dei flores - diz ele cínico - Você está falando bobagens.
- Eu não devia ter vindo, porque no fundo eu queria que minha vida fosse um daqueles filmes românticos e que você, depois de me magoar e me "perder" - ela desenha as aspas no ar -, tentasse me reconquistar. Mas isso é o mundo real e sinceramente não sei se estou pronta para ele.
- Você é real, não faz parte de um filme hollywoodiano que diz exatamente o que você quer ouvir. Nem sempre o que a gente quer é o que a gente precisa, ou o que é bom para nós, ou o que nós temos que ouvir.
- Eu sei, eu sei. Acredite, você não está me contando nenhuma novidade, sem ofensa - ela sorri - Você não gosta do meu drama. Eu não gosto da sua ambiguidade.
- Eu acho que você complica muito. Ainda assim é encantadora.
- E você acha que eu estava bebada - ela ri - só porque resolvi me abrir com você. Nossa, fazia tanto tempo que não fazia isso... Cansei dos seus jogos, mas não me cansei de você. O que eu faço?
- Você? Me pedindo conselho? - ele diz, fingindo surpresa - Não sei. O que a gente faz?
- Não se responde uma pergunta com outra pergunta. Bom, você pode voltar para casa e para a sua esposa. E eu volto para minha casa.
- E como você vai voltar?
- Você quer que eu peça, eu peço: será que você poderia me levar para casa? Eu não tenho orgulho, só  a consciência de auto-preservação e uma resolução de amor-próprio. Pena que nem todo mundo entenda isso...
- Era mais simples responder "sim" ou "não". Sério, eu não sei o que você quer de mim.
- Só não quero ser mais uma da sua lista. Mais uma da qual você vai falar para os seus amigos. Sabe, quando você está com alguém, essa pessoa não deve ser encarada e tratada como a única da sua vida? Ainda que não seja para sempre, que para sempre é muito tempo, naquele momento da sua vida, essa pessoa é única. Você não trata a sua esposa assim. Ela me parece ser só mais uma. Assim como eu, com potencial para ser só mais uma.
- Começou a falar bobagens de novo. Não tem idéia do que 'tá dizendo - diz ele ligeiramente irritado.
- A partir do momento em que você não diz, me dá o direito de deduzir.
- Vocês mulheres não têm jeito mesmo... E quem você pensa que é para deduzir as coisas? Acha que está marcando muitos pontos comigo, é?
- A partir do momento em que estou envolvida na situação, tenho o direito sim. Eu preencho os silêncios que você deixa.


Silêncio.


Ela se levanta, arruma a bolsa e a sandália que insistia em fugir do seu pé esquerdo.


- Você não foi ao meu casamento - diz ele se levantando.
- Não saí da sala da casa da Tia Ninota. Achei melhor não ir. Fiz questão de perder você casando, mas você perdeu... A chance de me ver tão bonita! - ela rodopia e de um salto manda-lhe um beijo de longe - Vamos? - ela pergunta.

Ele é todo silêncio. Mas dessa vez, ela não os preenche. E os dois voltam para casa com tudo pela metade, como sempre havida sido e como sempre haveria de ser.

Comentários

Anônimo disse…
ummm...

>sara

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