Maurício+Malu: Insônia

Era uma quarta-feria á noite mortalmente quente.
 
Maurício: - Amor, você não vem deitar?
Malu: - Tô sem sono. Vou assistir alguma coisa - ela dedilha as caixas de DVD.
Ele: - Vamos dormir. Não consigo dormir sem você...
Ela: - Não banque o dependente, sei que você dorme em qualquer lugar, de qualquer jeito - sorri ela.
Ele: - Ah! Mas você tem que levantar cedo amanhã...
Ela: - De que adianta se não vou conseguir dormir? Se bobear eu viro a noite, passo a madrugada embalada por Joni Mitchell e vou trabalhar. Não seria a primeira vez...
Ele: - 'Cê tá bem? Tá deprimida? Quando ouve Joni Mitchell quer dizer que tem coisa.
Ela: - Tá tudo bem sim.
Ele: - Joni Mitchell nem combina com esse calor dos infernos.
Ela: - O que você quer? Algo mais tropical? Carmem Miranda?
Ele: - É que eu sempre penso em River.
Ela: - A ausência de neve não impede que eu me identifique com ela. Se quiser posso até patinar no shopping Eldorado.
Ele: - Você não patina.
Ela: - Quem sabe?
Ele: - Se identificar com Joni Mitchell não me parece bom.
Ela: - Talvez não seja. Assim como não é bom se identificar com personagens dos filmes de Woody Allen. É mau sinal.
Ele: - Eu não me identifico. E você?
Ela: - Também não. Mas queria ter um pouco da Maria Elena do Vicky Cristina Barcelona. A Vicky é muito reprimida, conformista. A Cristina é uma insatisfeita, vai buscar a vida inteira por uma coisa que nunca vai encontrar. Insaciável. Gente assim é um saco. Elas são dois opostos. Já a Maria Elena é aquele furacão. É intensa. Ela é forte, determinada, talentosa...
Ele: - Você fala como se elas fossem reais - ele ri.
Ela: - E não são? - ela se vira para ele.
Ele: - Talvez - olhando para o teto.
Ela: - E ela é tão linda!
Ele: - Quem? Penélope Cruz? É nada. Cameron Diaz é que é maravilhosa - ele dá uma piscadinha.
Ela: - Loira? Magra de doer? Realmente, não temos o mesmo gosto para mulheres - ela sorri.
Ele: - Se você fosse homem e a gente fosse amigo isso seria perfeito, acredite, se bem que...
Ela: - O quê?
Ele: - Essa coisa de 'tipo' é bobagem, você sabe, né?
Ela: - Sei, os caras por quem me interessei tinham só dois traços em comum. De resto, eram muito diferentes entre si.
Ele: - E quais seriam esses traços? - pergunta ele curioso.
Ela: - Não tem importância - depois de uma breve pausa - Você quer saber se tem alguns desses traços? Tem sim: você é inteligente.

Maurício parece desapontado.
Ele: - Só isso?
Ela: - É, mas sei que inteligência não é tudo.
Ele: - Não é mesmo... Engraçado pensar nessa coisa de tipo.
Ela: - Por quê?
Ele: - Porque você não faz o meu tipo, digo, você não é o tipo de mulher pela qual eu me apaixonaria.
Ela: - No entanto...
Ele: - No entanto eu aprendi a ouvir Joni Mitchell e a ler Clarice Lispecor. O que não significa que eu goste.
Ela: - Eu sei - ela sorri - Você quer mesmo me ajudar a dormir?
Ele: - Pode dizer.
Ela: - Encare como uma prova de amor - ela ri.

Maurício ri.
Ele: - Não sei porque me bateu um medo agora.
Ela: - Você pode desligar a fonte, só hoje? Não consigo dormir com esse barulho.
Ele: - Barulho? Barulho você encontra na 25 de março: isso é o som esplêndido da água caindo e retornando, é um ciclo!
Ela: - Eu sei. E sei também que você comprou a fonte porque o "som esplêndido" lembra o som da gruta do sítio que você costumava frequentar quando sua avó era viva. Sei de tudo isso, mas não tenho dormido direito por causa da fonte. 'Cê não podia desligar à noite?
Ele: - Ah, tudo bem, já que te incomoda - diz ele desanimado.
Ela: - Vamos fazer assim: você desliga a fonte de noite e não compro mais a pasta de dente em gel que você odeia.
Ele: - Puxa. Então temos um acordo?
Ela: - Você viu que progresso o nosso? Aliás, meu né, afinal, estou aprendendo a negociar - ela sorri.
Ele: - Fico feliz por você não ser a Maria Elena, acho que ela não teria negociado.
Ela: - Eu teria te esfaqueado.
Ele: - Felizmente você é você.
Ela: - Embora não faça o seu tipo.
Ele: - Acho que eu não devia ter dito isso, né?
Ela: - Não mesmo, acho que tem coisas que a gente não diz, mas sem problemas. Acho que a essa altura, já fomos muito além dessa coisa de tipos. Ou eu não teria parado de fumar.
Ele: - É, acho que fomos além. E agora? O que a gente faz?
Ela: - Tenta dormir. Vamos? Ou então vou acabar te segurando aqui até amanhã cedo e sei como você fica mal-humorado de manhã, quando dorme mal.
Ele: - Mas nesse caso, se eu não tive a chance de dormir, ainda que fosse mal, como ficar mal-humorado?
Ela: - 'Cê tem razão.
Ele: - Não acredito que você está concordando comigo! O que aconteceu com a autora do livro "O prazer em discordar"?
Ela: - Eu disse que a gente estava progredindo, que estava indo além.
Ele: - Agora eu sou obrigado a concordar. Acho que estamos indo bem.
Ela: - É, estamos sim.
Os dois vão deitar. São três da manhã.

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