Tempestade


 Os dois estavam parados no ponto de ônibus. Clara preenchia os silêncios com seus próprios pensamentos. Já não despejava litros e litros de palavras e risos e gracejos. Séria, olhava para o céu:

- Vai chover – comentou vazia, enquanto sua cabeça borbulhava serenamente.

- É, vai mesmo – concordou ele, olhando para ela, enquanto ela olhava para frente.

Uma sensação estranha tomara conta dela. Um leve matiz de tristeza, sinal de quem está prestes a dizer adeus. Ele sempre muito risonho e ela naquele cansaço de quem passou pelo moedor de carne. Diluíam-se no vento que ventava intensamente.

Semi-satisfeita por já não ser lida tão facilmente – embora sua alegria andasse transbordando pelos poros –, avisou-lhe que ia comprar um sorvete e atravessou a rua. Clara era o eterno e terno quase. Pensou-lhe em dizer-lhe algo que ficou no ar.

Ele esperou e olhou-a nos olhos. Uns olhos escuros, mas não negros. Mas tão escuros eram que não se distinguiam íris e pupila. Quis olhar mais de perto, mas já estava perto. Perto demais? O suficiente para guardar o perfume e tocar-lhe de leve o braço. Quando deu por si, ela já estava voltando com o sorvete na mão.

- De que que é? – perguntou ele.

- Limão – disse ela oferecendo o sorvete.

Ele sorriu e agradeceu. Eles eram todo silêncio.

- Em que você ‘tá pensando? – perguntou ele.

Por dentro, Clara riu-se do seu halo de mistério não-fingido. Um riso que ele ouviu. Teria ele notado um leve tom de desdém naquele riso? Ele desdenhava o que sentia e secretamente esperava. Ela já não esperava absolutamente nada. Podava com destreza quaisquer botões rebeldes que pudessem surgir.

- Que ônibus você está esperando mesmo? – perguntou ela.

- Um que me leve para o centro – explicou ele e, como que para testá-la, continuou – tenho um encontro.

- Ah que bom – disse ela sem qualquer emoção.

- É - disse ele vago e distante.

Esse ônibus que não chega! A chuva se aproximava ligeira. Litros e litros de água cairiam sobre suas cabeças. Clara apressou-se com o seu sorvete, embora quisesse que aquele momento perdurasse por mais alguns minutos. Preciosos, escorreram com a chuva, que logo começou, e com o ônibus dela, que não tardou a despontar na avenida movimentada.

A despeito do seu ar de homem experiente e daquelas sobrancelhas das quais ela tanto gostava, ele era um tanto desajeitado às vezes. Sorriso bobo de menino, sabe? Ela não. Foi com decisão que deu o sinal para seu ônibus, virou-se para ele e beijou-o levemente nos lábios. Um arrepio percorreu-lhe a espinha e ele emudeceu. Quase pôde sentir o gosto do sorvete. Quase. Limitou-se a imaginar. Mas o choque entre os lábios frios dela e os quentes dele foi certo. Assim como o choque sentido por ele.

Ainda olhou-o nos olhos por uma última vez. Muito tranqüila, subiu no ônibus e ele quase segurou-lhe a mão. Mas não podia.

Ela não olhou para trás e procurou um lugar para se sentar e seguir viagem. E ele sentiu que uma grande tempestade ia desabar.

Comentários

Tatiana Machado disse…
Ai, essas suas moçoilas decididas! Que se exploda o encontro do centro ;) Viva à Clara!!
biel madeira disse…
e ela tinha de não olhar pra trás?
um olhar e ele seria inteiro destruído!
hehe!

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